Vol. 9, n. 1, aprile 2023
PEDAGOGIA INTERCULTURALE
Dall’Etica della cura all’Ospitalità incondizionata
Per una filosofia della migrazione
Rubens Lacerda de Sá1
Sommario
Al di là della proposta etica in Lévinas, Dussel, Freire e altri (Sá, 2021c), vorrei discutere l’etica heideggeriana della cura (Heidegger, 2002; 2005) e le dinamiche dell’ospitalità di Derrida (Derrida, 2003; Sá, 2020a) in coincidenza con il progetto di emancipazione sociale dei migranti (Sousa Santos, 2002). Da questa discussione nasce un invito al dialogo tra ricercatori interessati alla condizione dei migranti in fase di attraversamento (Sayad, 1998; 2000). Se è così, mi sembra fattibile che si possano fare progressi nel rifiutare l’ibridazione che porta al silenzio (Gilligan, 1982; Cusicanqui, 2021) e la cancellazione delle radici e dell’ethos dei migranti (Sá, 2016a; 2021b). Inoltre, cercherò di assicurare che l’intero dialogo di questo testo abbia un tono di denuncia dell’invisibilità del migrante e che sia stabilito in modo confinante dal Sud epistemologico, forse anche irrigato, dall’onto-epistemologia anticoloniale come opzione per lo smantellamento delle colonialità, che sostengono il mito della modernità, i suoi miraggi e la fallacia ideologica del pensée unique (Campos, 1991; Freire, 1992; Ramonet, 1995; Sousa Santos, 2021).
Parole chiave
Etica della cura, Ospitalità, Migrazione.
Intercultural pedagogy
From Ethics of Care to Unconditional Hospitality
For a Philosophy of Migration
Rubens Lacerda de Sá2
Abstract
Beyond the ethical proposal in Lévinas, Dussel, Freire, et al. (Sá, 2021c), I would like to debate the Heideggerian ethics of care (Heidegger, 2002; 2005) and the dynamics of Derrida’s hospitality (Derrida, 2003; Sá, 2020a) coinciding with the project of social emancipation of migrants (Sousa Santos, 2002). This discussion gives rise to an invitation to dialogue between researchers interested in the condition of migrants in the process of crossing (Sayad, 1998; 2000). If so, it seems feasible that progress can be made in rejecting the hybridity that leads to silencing (Gilligan, 1982; Cusicanqui, 2021) and the erasure of the roots and ethos of migrants (Sá, 2016a; 2021b). In addition, I will try to ensure that the whole dialogue of this text has a tone of denunciation of the invisibility of the migrant and that it is established in a bordered way from the epistemological South, even perhaps irrigated, by the anticolonial onto-epistemology as an option for the dismantling of coloniality, which sustains the myth of modernity, its mirages and the ideological fallacy of the pensée unique (Campos, 1991; Freire, 1992; Ramonet, 1995; Sousa Santos, 2021).
Keywords
Ethics of care, Hospitality, Migration.
Que outra coisa significa isto, a não ser que o homem, homo,
se torne humano, humanus?
Martin Heidegger
Um ato de hospitalidade só pode ser poético.
Jacques Derrida
Para o bárbaro Procusto a ordem e a beleza na sociedade só seriam alcançadas por meio de padrões homogêneos. Para tanto, quando seus hóspedes se deitavam na cama modelo que ele havia criado, ele verificava se estavam perfeitamente encaixados. O que sobrasse da cama, pés ou cabeça, eram cortados para que o corpo se encaixasse no molde idealizado por Procusto. Assim, todos naquela sociedade seriam iguais (Sá, 2018).
Mais parecido a um roteiro de horror, o mito procustiano pode bem metaforizar a lógica que nos é imposta socialmente na contemporaneidade. Eu3 poderia pensar em inúmeros grupos sociais que têm seus pés ou cabeças decepadas pelo mito da modernidade4 com suas miragens e falácias, mas para os fins a que se destina este texto e, por conseguinte, esta obra, irei concentrar-me nos migrantes.5
Em adição à proposta ética em Lévinas, Dussel, Freire e outros (Sá, 2021c), pretendo discutir a ética do cuidado heideggeriana (Heidegger, 2002; 2005) e a dinâmica da hospitalidade derridiana (Derrida, 2003; Sá, 2020a) aliada à proposta de emancipação social do migrante6 (Sousa Santos, 2002). Essa discussão enseja um convite ao diálogo entre pesquisadores interessados na condição do migrante em processo de travessia (Sayad, 1998; 2000). Desse modo, entendo que será possível que avancemos no rechaço ao hibridismo que conduz ao silenciamento (Gilligan, 1982; Cusicanqui, 2021) e ao apagamento das raízes e do ethos dos migrantes (Sá, 2016a; 2021b).
Ademais, eu, neste texto, e os demais autores da obra envidaremos esforços para que todo o diálogo que estabelecermos seja suleado, tangenciado, quiçá banhado, pela onto-epistemologia anticolonial qual opção para o desmantelamento das colonialidades que sustentam o mito da modernidade, suas miragens e a falácia ideológica da pensée unique (Campos, 1991; Freire, 1992; Ramonet, 1995). Por conseguinte, estendo um convite aos leitores para o diálogo e para escrutinar este texto, bem como os demais que compõem esta obra (Foucault, 1969). Mwen swete ou yon lekti ekselan!
Por um Brevíssimo Prefaciar da Ética do Cuidado Heideggeriana
Falar de ética, gr. ἔθος, possui vínculo direto com a relação de alteridade entre o eu e o outro.7 Ampliar a questão ética para o cuidado, enquanto plataforma filosófica da ação moral, possibilita a revitalização da humanidade no ser humano, bem como a aderência à concepção antropológica de Paulo Freire (1980). Meu foco, nesse sentido, é dirigido aos migrantes a quem aplico e ecoo a pergunta de Heidegger «para onde se dirige “o cuidado”, senão no sentido de reconduzir o homem novamente para sua essência? Que outra coisa significa isto, a não ser que o homem, homo, se torne humano, humanus?» (2005, p. 17).
Esse tema é relevante ao tratarmos da condição do migrante, pois historicamente o mito da modernidade desenhado e desenvolvido a partir do século XIII promove o rechaço ao diferente, ao estranho. Essa palavra deriva do latim eccentricus, que significa «fora do centro, descentrado», ou seja, designa uma pessoa fora dos eixos, desencaixada, anormal e que, embora não seja necessariamente um criminoso, é considerado como um desequilibrador e desagregador do tecido social. Quando penso no migrante, entendo que este é muitas vezes associado a essa conotação em latim. Sua voz destoa e precisa ser silenciada por ser diferente e não se encaixar na lógica do pensamento dualista ocidental8 que polariza o mundo entre razão e emoção, superior e inferior, etc. Isso contribui para a manutenção da submissão, a prevalência de estereótipos, preconceitos e discriminação.
Por essa razão, pensar em uma plataforma ética moral do cuidado é fundamental para estabelecer uma oposição à ideia de que os humanos são agrupados em categorias taxonômicas cujas diferenças são irreconciliáveis e que não podem ser questionadas para que se mantenha uma ordenação da vida baseada no não-eccentricus. Considerando essa ótica, a ética do cuidado torna possível, portanto, ensejar uma transformação no modelo de relações sociais que valorize o outro, bem como no desenho do espaço social que prime pelo humanus e seja promotor de justiça social.
Antes de avançar, porém, gostaria de esclarecer aos que estão lendo meu texto que não pretendo discorrer em profundidade sobre essa proposta ética nem sobre a celeuma envolvendo diferentes pontos de vista em torno do cuidado. Por exemplo, segundo Missagia (2020), no campo da psicologia é possível encontrar diferentes formulações em torno dos trabalhos de Lawrence Kohlberg (1981), Carol Gilligan (1982) e Nel Noddings (1986). O primeiro, Kohlberg, parece assentar-se em uma base epistemológica tendenciosa a partir da tradição filosófica cuja centralidade em direitos, normatizações e justiça não levam em consideração distintas concepções morais. A segunda, Gilligan, embora avance e proponha a inclusão de diferentes vozes, sobretudo a feminina, nas questões do cuidado moral, não aprofunda suas considerações e não inclui outros marcadores sociais nas relações entre os sujeitos sociais. Por fim, a terceira, Noddings, ingenuamente essencializa o tema da reciprocidade nas relações sociais. Faltaram aos três considerar os diferentes contextos que promovem desigualdades e são geradores de opressão e violências contra grupos minorizados, e.g., os migrantes.
Pois bem, avançando para a proposta de Martin Heidegger (2002), este conceitua e nomeia o termo dasein em contraposição à proposta cartesiana de universalização do eu que se realiza fora do mundo e alheio ao outro. Ao levar em consideração a perspectiva ontológica, o filósofo estabelece uma relação simbiótica entre o ser, o eu, e o ente, o outro, em que um se constitui junto ao outro. Em outros termos, Heidegger nos mostra que não é possível conceber o mundo sem o humano nem o humano sem o mundo. Essa é a dinâmica que o dasein comporta. Portanto, o cuidado é um modo-de-ser enquanto essência do dasein. Nas palavras dele (2002, p. 257), «o ser da presença diz preceder a si mesmo por já ser em (no mundo) como ser junto a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo)». Esta é a constituição e a essencialidade do cuidado!
Portanto, a própria existência do eu pressupõe responsabilidade plena em relação ao outro, i.e., o já ser-em e o ser-junto a na constituição do cuidado compartilhado. Para o filósofo, a negação ao cuidado representa a negação à cura social, ou seja, «a cura não indica, portanto, primordial e exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo», pois isso seria tautológico; ele conclui ao dizer que a compreensão do dasein pressupõe «dois momentos estruturais da cura: o já ser-em e o ser-junto a» (Heidegger, 2002, p. 257).
Ao falar sobre a época em que Heidegger viveu, Habermas diz que, de «Descartes até Nietzsche, a racionalidade» moderna reside no «apuramento da raça» e com isso «o homem é subjacente a todo ente, ou seja, a toda a objetivação e representabilidade dos tempos modernos, o subjectum» (Habermas, 2000, p. 140). Essa racionalidade promove o ter em detrimento do ser e, consequentemente, as relações de alteridade são afetadas e comprometem a ética do cuidado, i.e. «o já ser-em e o ser-junto a» heideggeriano.
É por esse motivo que Heidegger alerta que «estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicalidade, a essência do agir, que é o consumar. Consumar significa desdobrar alguma coisa até a plenitude de sua essência, levá-la à plenitude, producere» (2005, p. 7). Assim, promover essa radicalidade em oposição à racionalidade moderna implica no agir humano, ou seja, «cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora da sua essência» (Heidegger, 2005, p. 17). Pensar de modo diferente, significa não transcedentalizar, que na concepção heideggeriana do cuidado tem o sentido de ascender, ir além, cruzar e exceder.
Minha pretensão é ressaltar que entender o cuidado sob essa perspectiva e plataforma ético-filosófica da ação moral contribui para a compreensão de que o fluxo migratório internacional é de responsabilidade de todos enquanto sociedades que acolhem os muitos migrantes da contemporaneidade, embora esse fluxo seja um reflexo direto dos efeitos produzidos pelo mito da modernidade, suas miragens e falácias.
Para exemplificar tais efeitos, destaco que, segundo o relatório do primeiro semestre de 2021 da UNHCR (https://www.unhcr.org/refugee-statistics/), havia cerca de 84 milhões de pessoas que foram forçadas a se deslocar. Desses, 26,6 milhões eram refugiados, 4,4 milhões pediram asilo, 3,9 milhões eram venezuelanos e cerca de 48 milhões tiveram que se deslocar internamente. Desses 84 milhões, cerca de 35 milhões, i.e. 42%, eram menores de 18 anos de idade.
Quando pensamos no total de migrantes mundo afora chegamos a triste cifra de 281 milhões de pessoas que tiveram que deixar suas raízes. Em 2020, o mundo começou a enfrentar a pandemia da Covid-19. Como seria de esperar, os migrantes, por conta de sua condição de vulnerabilidade, estão entre os mais afetados pelo coronavírus. Frank Laczko (2021) menciona que por causa da falta de acesso aos sistemas de saúde, subempregos, baixa renda e condições de moradia precárias, as taxas de infecção e morte de migrantes por Covid-19 em muitos países é maior do que as mortes de nativos. Trata-se, portanto, de uma população que é invisível tanto em vida quanto na morte.
Com esses poucos dados tristes, encerro meu sucinto ensaio sobre a ética do cuidado qual plataforma filosófica moral e ressalto que, embora sendo um filósofo humanista, Heidegger é contundente em sua crítica ao humanismo em seu termo rigoroso que carece da compreensão plena do dasein, do já ser-em e o ser-junto a. Sua crítica é dirigida à tecnicidade e objetividade das relações que nos impede de pensar no cuidado.
Na minha percepção, a ética do cuidado heideggeriana dialoga perfeitamente com outra plataforma filosófica importante, que é a hospitalidade derridiana. Falemos desta!
Da Hospitalidade Derridiana
Basta acessar a internet ou outros meios de comunicação em massa que já nos damos conta da dimensão do fluxo migratório e a circulação de pessoas no mundo. Qualquer dado estatístico que se forneça torna-se rapidamente obsoleto e desatualizado.9 Por esse motivo, o fluxo migratório intenso pressupõe a necessária hospitalidade10 qual conjunto de ações que envolvem tanto os acolhedores como os acolhidos.
Assim, almejando uma definição ao que concebo por hospitalidade, opto por valer-me e ancorar-me em alguns dos preceitos de Derrida (2003). Para tanto, este filósofo franco-magrebino enseja a desconstrução desse construto por meio de uma operação analítica ao partir da constituição lexical do termo hospitalidade para, em seguida, demonstrar sua inerência caracteristicamente ambivalente.
Jacques Derrida recorre, então, à descrição histórica que Émile Benveniste (1995) faz da etimologia da palavra. No latim, hospes significa «aquele que está/[é] estabelecido». (pp. 89-91) Já o derivado «hostis significará “aquele que está em relação de compensação”» (p. 93) e era usado geralmente com referência ao hóspede ou estrangeiro,11 nas línguas indo-europeias arcaicas. Nesse caso, ser hóspede, para o estrangeiro, implicava a obrigação tríplice de dar-receber-ressarcir.
Contudo, Derrida (2003) destaca que em sua raiz etimológica a palavra hospitalidade pode abranger tanto o significado de hóspede quanto de hostil, inimigo. A partir dessa compreensão, Derrida (2000) compacta tais significados e cria o termo hostipitalidade para salientar o processo de deslocamento e a condição dupla e ambígua tanto do anfitrião como do hóspede. O primeiro pode conceder ao segundo o direito à hospitalidade, hospes ou seu chez-soi, mas também pode encará-lo como «parasita, hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível de detenção ou expulsão» (p. 53).
Derrida entende que essa postura ambivalente é um tipo de violência, pois o caráter hospitaleiro e irrestrito é acompanhado de escolhas, eleição e exclusão. Argumenta que, do ponto de vista linguístico e cultural, o anfitrião encara o hóspede ou estrangeiro como um parasita em potencial ainda que este seja hostis e o compense pela hospitalidade. É assim que se materializa a hostipitalidade, ou seja, por traz da boa recepção esconde-se o incômodo. Na citação que se segue, Derrida ilustra esse ponto:
[…] o estrangeiro é, antes de tudo, estranho à língua do direito na qual está formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas, sua polícia, etc. Ele deve pedir a hospitalidade numa língua que, por definição não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado, o pai, etc. Estes impõem a tradução em sua própria língua, e esta é a primeira violência. A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do termo, em todas extensões, antes de poder acolhê-los entre nós? (2000, p. 15).
Desse modo, o filósofo salienta a violência linguística e cultural que é perpetrada incialmente por meio da língua do hospedeiro, que representa a ambivalência e a contradição da condição dos atores envolvidos. Sobre isso, Gediel, Casagrande e Kramer (2016, p. 22) dizem que a «hospitalidade sem limitações vem orientada pela ideia de que o humano que chega é diferente do outro que o recebe em sua terra. É estranho, estrangeiro; espera a hospitalidade incondicional e se depara com a hospitalidade condicionada». Em outras palavras, concretiza-se, assim, a hostipitalidade derridiana porque no entendimento do filósofo não há incondicionalidade na recepção e na acolhida.
Bem, se desloco o meu foco para os migrantes de um modo geral, entendo que estes também são passíveis de serem submetidos ao mesmo processo ambíguo da hostipitalidade derridiana, ou seja, a hospitalidade condicionada. Gediel, Casagrande e Kramer (2016, p. 23), pensando na universidade, dizem que «as aporias, os paradoxos e as ambiguidades engendrados no confronto das hospitalidades condicionadas também se apresentam como desafios para a [sociedade acolhedora] incondicional».
Isso me faz lembrar do filme brasileiro, dirigido por Daniel Filho (2009), chamado Tempos de Paz. Essa obra cinematográfica retrata de forma bem inequívoca a relação hostipitaleira e conflituosa entre um brasileiro, o anfitrião, e um migrante, o hóspede, que busca no Brasil um lugar de paz, longe dos horrores da II Guerra Mundial, contudo, é submetido às mesmas formas de violência denunciadas por Jacques Derrida.
Ao falar da intensa mobilidade de pessoas na contemporaneidade, Pereira (2011, p. 9) diz que esse movimento deveria «aponta[r], portanto, para um passado de sofrimento que se quer abandonar e para um futuro em que se projeta a esperança de mudança». Na ótica freudiana (Freud, 1996), isso implica que se reelabore um certo trabalho de luto por causa do distanciamento da terra natal. Era exatamente isso que buscava o migrante, o hóspede, do filme Tempos de Paz. Ansiava e sonhava com a hospitalidade brasileira e projetava seu futuro em esperança aqui no Brasil.
Ao aplicar essa situação correlata aos migrantes, minha perspectiva é que estes não sejam submetidos ao processo violento, à hostipitalidade, em termos derridianos. Que sua sua estada no cenário brasileiro contribua para sua reelaboração do luto mencionado por Freud (1996) e que esta ocorra o mais amenamente possível por meio de práticas de hospitalidade incondicional livre do hostis de Émile Benveniste (1995).
Trata-se de uma tarefa complexa. Tal complexidade me remete novamente a Freud (1976) em outro de seus textos, no qual, trata da questão da ambiguidade dos termos estranho e familiar, unheimlich e heimlich em alemão. Para o psicanalista, ambos comportam sentidos iguais. Sempre há estranheza frente ao novo, desconhecido e inusitado, mas que se torna familiar no instante seguinte a partir do momento que se reconhece o outro na sua alteridade. Esse movimento é cíclico, repetitivo, mas também gerador de conflitos e dúvidas. Enriquez (1998, p. 40) arremata tal ideia ao dizer que «o papel do outro em sua pura alteridade é sempre questionar nossas certezas».
E exatamente por causa dessa movimentação, conflitos e incertezas constantes é que vejo como necessário que a sociedade acolhedora sempre se certifique, para além de permitir o acesso ao migrante, que lhe seja garantida condições digna de sobrevivência sem que novos traumas contribuam para a intensificação do luto freudiano. Digo isso, pois tais migrantes participam de um jogo de alteridades — do unheimlich e heimlich, do eu e do outro, ao chegarem ao novo destino. Permitir a chegada desses migrantes exige ir além nesse jogo; exige a garantia do devido acolhimento, bem como o acompanhamento até que alcancem estabilidade na terra escolhida. Desse modo a hospitalidade será incondicional e não se converterá na hostipitalidade teorizada por Derrida (2003).
Bem, após discorrer sobre uma definição para o que concebo como hospitalidade, penso que é providencial falar um pouco sobre a base sustenção para essa temática complexa. Entendo que é possível ampliar a compreensão da questão de hospitalidade estabelecendo relação com a proposta de emancipação social12 em Sousa Santos (2002).
Da Emancipação Social do Migrante
Para começar, preciso remontar ao tema da globalização neoliberal hegemônica (Sá, 2020a), que não abre espaços para a necessária emancipação do migrante, pois não se pauta pela igualdade e justiça social. Essa lógica excludente cria mecanismos que impedem que esta seja reinventada e que alternativas com novas possibilidades e limites para essa globalização sejam produzidos, pois se ancora em uma dinâmica produtivista e capitalista. Para Milton Santos (2000, p. 19), essa lógica é «perversa e desigual».
Pensando em uma proposta contra-hegemônica à globalização, Sousa Santos (2002) nos apresenta o conceito da razão indolente que partiu e se desenvolveu no contexto sociopolítico imperialista e colonialista. Essa razão continua sustentando, na atualidade, o pensamento universal, agora maquiado de globalização e enviesado pela plataforma neoliberal, que visa a produção e ratificação de inexistências, ou seja, o apagamento do que é periférico ou que não contribui para a manutenção da lógica produtivista capitalista cuja meta é prioritariamente o lucro. Aquilo que, nessa lógica, não é lucrativo considera-se improdutivo e deve ser subtraído, tornado inexistente. Daí a ideia de que essa lógica gerencia a produção social de inexistências incluindo os migrantes.
Para Sousa Santos (2002), é dentro dessa lógica que a razão indolente, fruto da globalização neoliberal hegemônica, «privilegia as entidades ou realidades que alargam o seu âmbito a todo o globo» (p. 248) e tratam de desacreditar experiências alternativas locais e particulares levando ao «desperdício da experiência» (p. 239). Para ele, a razão indolente impede a emancipação social e é operacionalizada por meio de outras quatro razões que a sustentam. (p. 240) A primeira é a razão impotente cuja premissa é difundir a ideia de que esta «não deve ser exercida, pois não há nada que se possa fazer» contra a lógica posta. A segunda é a razão arrogante que «se imagina incondicionalmente livre e sem a necessidade de demonstrar a sua própria liberdade» e, portanto, não há o que se questionar nessa lógica, pois ela se considera fora de qualquer alcance. Há também a razão metonímica «que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade», e, por fim, a razão proléptica que «não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente».
Esta última, a razão proléptica, para Sousa Santos (2002, p. 239), é uma das responsáveis pela criação de uma visão que «contrai, diminui e subtrai o presente», ou seja, produz uma imagem perfeita, desejável e almejada de um futuro brilhante e feliz em detrimento do presente de dor e sofrimento que deve ser subtraído, deixado para trás. Tal pensamento faz com que a sociedade se dedique a essa lógica capitalista que enxerga no produtivismo a panaceia futura de todos as mazelas do presente. Promove-se a ideia de um futuro ambiguamente abstrato e concreto, porém ao mesmo tempo, sempre pautado pelo progresso, pela ordem, pelo ilimitado e pelo infinito. Um futuro que se dilata e se expande para acolher e abrigar a todos os que se dispõem a aderir a essa lógica.
É dentro desse pensamento que a ingerência política de muitos países contribui para o desenraizamento dos migrantes que, na maioria das vezes, busca apenas a sobrevivência e a dignidade. Esse pensamento promove a ideia de que aquele que não está feliz com o que o seu lugar oferece, deve migrar para poder usufruir do futuro brilhante, promissor e redentor dos dissabores do presente em sua origem. Ao ser afetado por essa lógica de pensamento hegemônico neoliberal também faz com que o migrante creia ser de mais valia desacreditar e descartar suas próprias experiências locais, que são vistas como desnecessárias para a emancipação social, atrelada ao ter e não ao ser.
Para seguir no esboço e relação da proposta sociológica de Sousa Santos (2002) em apoio à questão da hospitalidade derridiana gostaria de ater-me um pouco mais à razão metonímica. Enquanto figura de retórica, a metonímia vale-se de uma palavra ou um conceito fora do seu contexto semântico habitual para oferecer uma significação que tenha relação objetiva, qualitativa e de contiguidade. Na proposta do sociólogo português, a razão indolente encontra amparo na razão metonímica porque, nessa lógica indolente, ele percebe que o pensamento neoliberal hegemônico e globalizador faz uso de um tipo especial de metonímia, a sinédoque, cuja relação qualiquantitativa entre o significado original da palavra e seu reflexo pode alterar seu conteúdo ou referente.
Na razão metonímica toma-se a parte pelo todo resultando em um conceito de totalidade feito de partes homogêneas. Essa premissa totalizante procura ofuscar o presente desacreditando-o como promotor de alternativas locais e particulares capazes de propiciar a emancipação e o bem-estar social e, assim, reforçando sua ineficácia e inexistência, bem como o desperdício de suas experiências. Essa razão promove uma suposta ordem e paz nas relações sociais que resultam em supostas simetrias, mas que são, na verdade, subterfúgios hierarquizados, totalitários e avesso a outros saberes.
Para a razão metonímica, interessa-lhe apenas o que opera dentro da visão de totalidade e totalizadora da globalização neoliberal excludente. Esta deve funcionar sempre na direção top down, do ocidente para o oriente, do norte para o sul. Toda e qualquer tentativa de inversão dessa ordem hegemônica é rebatida e prolepticamente subtraída. Não se admite uma dimensão discursiva originária do sul e que seja bottom up.
Não obstante, temos presenciado nos últimos anos uma crescente movimentação mundial de grupos e organizações sociais originários do sul que buscam oferecer um contraponto à globalização neoliberal que promove as migrações e os desenraizamentos. Essa movimentação é chamada de grassroots globalisation. Ao falar sobre o surgimento de um «duplo apartheid» (p. 2), Arjun Appadurai conceitua grassroots globalisation e diz:
que se trata de uma série de modelos sociais que surgem para contestar, questionar e reverter o avanço dessas formas de apartheid. Faz isso por criar fórmulas para a transferência de conhecimento e a mobilização social que independem das ações das corporações e Estados capitalistas e seus parceiros e apoiadores. Esses modelos sociais são baseados em estratégias, visões e perspectivas de uma globalização provinda de baixo em benefício dos mais pobres (2001, p. 03).
Esse tipo de globalização, grassroots globalisation, opera contra a razão metonímica e contra a razão proléptica, pois «permite que as pessoas resistam à violência estatal e procurem redesenhar suas perspectivas sociais de modo mais colaborativo» (p. 6). Ademais, capacita à «participação de fóruns internacionais com embasamento teórico» (p. 19) suficiente para propor e defender uma «globalização alternativa», segundo Sousa Santos (2002, p. 237) e lutar, com diz Milton Santos, por «outra globalização, uma mais solidária» (2000, p. 141) e por uma «globalização mais humana» (2002, p. 79).
Desse modo, por causa dessa resistência à globalização, resistência a qual podemos chamar de contra-hegemônica, grassroots, alternativa, mais humana, outra, mais solidária ou bottom up, etc. é possível inferir que faz sentido conceber a reversão da hostipitalidade, ou hospitalidade condicionada, teorizada e denunciada por Derrida em favor de uma hospitalidade incondicional, plena e que contempla os migrantes sem se importar com seu lugar de partida nem de chegada. Por conseguinte, é a partir das marcas da razão metonímica, parte do projeto da razão indolente como sustentadora de um pensamento universal, que estabeleço a relação com a hospitalidade.
Adicionalmente, a razão metonímica é sistematicamente organizada em torno de um projeto reducionista, determinista e dualista na contemporaneidade. É reducionista porque busca a eliminação das heterogeneidades e visa à totalidade; é determinista porque é fundada em relações de causalidade e leis universais, imutáveis e inflexíveis e que excluem o acaso e a indeterminação; e, é dualista porque na razão metonímica a condição social e a realidade são antagônicas e interdependentes.
O primeiro ponto que merece atenção no meu entendimento diz respeito à permissão de acesso ao país de chegada no caso dos migrantes. Essa permissão é, ao meu ver, gerida pela visão reducionista da razão metonímica, ou seja, muitas sociedades acolhedoras têm a percepção equivocada de que permitir a entrada de migrantes em seu território pode ser reduzido a esse ato político, que é muitas vezes erroneamente interpretado como uma ação humanitária, ou seja, uma contraposição ao que discuti sobre a ética do cuidado heideggeriano que expõe a visão distorcida de humanidade.
Essa lógica reducionista acarreta na desconsideração da pluralidade do sujeito migrante, pois é afeita à totalidade. No Brasil, por exemplo, a aderência à lógica da universalização, da homogeneização e a simpatia à eurocentrização faz com que os migrantes sejam considerados uma massa única, disforme e sem especificidades que mereçam atenção do poder público. As ações de permissão de acesso são desenhadas tendo um público seleto e específico em vista, sem considerar a diversidade migrante.
Esse funcionamento reducionista da razão metonímica também contribui para o que Sousa Santos (2002) conceitua como epistemicídio, i.e., o sistemático desperdício de experiências e saberes plurais desses migrantes no local de chegada. Esse desperdício de epistemologias diversas produz a morte dessas experiências e saberes plurais migrantes no esforço de alinhá-los ao modelo hegemônico de racionalidade. É um desperdício epistêmico porque as sociedades acolhedoras deixam de se beneficiar desses saberes outros e, ao anular as subjetividades migrantes, servem aos interesses da razão metonímica deixando, assim, de contemplar a hospitalidade incondicional.
Para o combate e neutralização dessa lógica metonímica, Sousa Santos propõe o desenvolvimento do senso crítico capaz de se contrapor aos paradigmas que dominam a sociedade contemporânea. Luna (2016, p. 35) diz que esse «questionamento se erige a partir do inconformismo com a redução de todo o conhecimento a um único paradigma» migrante, que é descontextualizado do ponto de vista social, político, econômico, etc. Para Sousa Santos (2002, p. 246), isso implica em «mostrar que qualquer totalidade é feita de heterogeneidade e que suas partes têm uma vida própria fora dela».
Outra marca da razão metonímica é o determinismo. Essa visão influencia as sociedades acolhedoras no sentido de impedir que enxerguem que os fenômenos humanos não estão interligados e que o seu comportamento subjetivo não é totalmente predeterminado. Com isso, há a pressuposição de que os migrantes, uma vez recebidos, não precisam de ações planejadas e coordenadas para a manutenção de sua estadia, que é assumida como sendo uma relação causal regida por leis universais imutáveis. Em outras palavras, há o pressuposto de que, uma vez tendo sido recebidos, os migrantes já têm em si mesmos as condições de acomodação. Já é suficiente a benesse do recebimento. Ocorre, portanto, a hostipitalidade derridiana e a não-ética do cuidado.
Para escapar dessa visão determinista da razão metonímica é fundamental que seja desenhado e implementado um referencial moral e ético em relação aos migrantes. Isso implica auxiliá-los a estabelecer relações sociais desde sua chegada no país de acolhida. Strey e Rodrigues (2006) falam do abandono da aventura de migrantes quando chegam em portos, terminais de ônibus e trens, e aeroportos. Não são, evidentemente, recepcionados, nem contam com possibilidades concretas de acomodação. Na maioria dos casos não conhecem a língua do país que permite sua entrada. Passam, assim, a viver um período angustiante e incerto, pois não há acolhida já que essa é presumida. Há, então, um abismo entre o migrante que chega e a sociedade que deveria acolhê-los.
José Gediel, Melissa Casagrande e Josiane Kramer (2016, p. 34) dizem que «a hospitalidade nos interpela cotidianamente para nos lembrar das possibilidades de contar com o outro para buscar convergências e divergências criativas» que, por sua vez permitirá que os relacionamentos entre os acolhedores e os acolhidos possibilitem a «plena fruição da vida social». Para os autores, a acolhida hospitaleiramente incondicional será uma mostra de que o acolhedor não vê o migrante como alguém sem passado e cuja alteridade e subjetividade não mereçam consideração e atenção.
Spyros Franguiadakis (2016, p. 203) chama de «política da hospitalidade» quando as relações de alteridade e as subjetividades do migrante são levadas em conta ao acolhê-lo. Acrescenta que «nessa perspectiva, a relação com o outro e a questão da alteridade recobrem-se de uma lógica mais gestionária na medida em que ela possibilita oxigenar a questão do viver junto» (p. 202). Trata-se, assim, de uma hospitalidade solidária, pois pensa na chegada, no encontro e na estada do migrante.
Portanto, é importante ressaltar que essa hospitalidade solidária e incondicional é um empreendimento que envolve inúmeras parcerias entre os diferentes atores engajados nas ações de acolhimento do migrante, embora se reconheça que há um sem fim de obstáculos para a materialização de tais atos. Jacques Rancière (2004) destaca que nesse cenário, ou nessa política da hospitalidade, esses atores não podem ser perdidos de vista. Alinhado a isso, Isaac Joseph nos lembra que «antes de ser cidadãos, somos contíguos e é nessa proximidade distante ao migrante que aprendemos a dar um sentido comum à noção de mundo» (2007, p. 216). Por fim, ecoo Bonny Norton (2013) para não esquecer que todos almejamos reconhecimento, pertencimento, estabilidade e segurança.
A última marca de organização da razão metonímica é sua plataforma dualista. Na visão filosófica dualista cartesiana, o princípio elementar da condição humana em diferentes contextos é antagônico e independente que, marcado pela dessemelhança, caberá única e exclusivamente ao migrante a responsabilidade primária pelo êxito de sua jornada em outras terras e pela construção de sua emancipação na sociedade.
Para Suresh Canagarajah (2005, p. 15), a postura que se centra apenas na acumulação de capital, em antagonismos e na ausência de cooperativismo, leva à «guetorização de minorias ou ao seu ostracismo intelectual» por considerar os membros dessa minoria como incapazes de produzir conhecimento, de contribuir para a construção de novas epistemologias no local de chegada e, portanto, são inúteis.
Trocando em miúdos o que venho discorrendo, quero dizer que pensando em um processo de hospitalidade incondicional que vise à emancipação social dos migrantes, as sociedade que recebem migrantes devem continuar a fazê-lo e permitir sua entrada, pois isso significa a compreensão plena do dasein, do já ser-em e o ser-junto a. Não obstante, essas sociedades devem toma o devido cuidado para que esse acesso não seja levado a termo apenas por um viés reducionista. Ademais, não é cabível deixar ao determinismo e ao dualismo o desenho e implementação de políticas e ações de hospitalidade e cuidado.
Anticolonizando e Arrematando o Bate-papo
A modernidade é um mito que produz miragens falaciosas. Dentre algumas de tais miragens, posso citar o imperialismo, o colonialismo, o capitalismo, as colonialidades, a globalização, o neoliberalismo, etc. Ao longo da história essas, e outras, miragens são redesenhadas e reconfiguradas para servir como instrumentos usados pelo mito da modernidade com o fito de velar seus verdadeiros objetivos, embora seu axioma seja sempre a alegação de avanço e progresso. Contudo, para o seu devido funcionamento essas miragens precisam arquitetar ideologias bastante engenhosas para camuflar sua verdadeira face falaciosa e, assim, sustentar esse mito. Com essa máquina em ação, a modernidade tem, desde o séc. XIII, invadido um território após outro e extirpado povos, dominado outros tantos e violentado todos por meio da expropriação de suas riquezas materiais, culturais, linguísticas, territoriais, históricas, subjetividades e, por fim, sua vida. Outra tarefa dessas ideologias falaciosas engenhosamente arquitetadas por esse mito da modernidade tem o objetivo de justificar e validar suas ações criminosas ao longo das eras, bem como impedir, postergar ou enfraquecer quaisquer insurgências dos povos que são sistematicamente humilhados e privados de seus bens e de sua humanidade.
Diante desse quadro de horror, literalmente falando, alinho meu pensamento ao que sugerem Andreotti, Silva e Jordão (2021) quando dizem que é preciso pensar em maneiras de «curar o trauma entretecido pelos instrumentos do colonialismo e do império», mas, ao mesmo tempo, estar atentos para recusar-se a «engajar-se em processos que reproduzem males antigos, mesmo que o façam de modos novos» (Heller e McElhinny, 2017, p. xv). É verdade que estamos todos mergulhados no charco da matriz da colonialidade e suas muitas nuances na contemporaneidade, mas precisamos desenhar novos modos dasein, o ser-aí, qual essência propositiva mantida e renovada ao longo de narrativas inovadoras, sem nos afastar do «já ser-em e o ser-junto a» que Heidegger (2002, p. 257) nos convida a pensar. É preciso conceber modos de neutralizar e eliminar a lógica operacional do «apuramento da raça» que a racionalidade moderna quer impor ao ser-aí tornando-o subjectum, que no latim escolástico quer dizer «aquele que é subordinado», ou em sua forma neutra substantivada do subjectus, significa «submisso a». Esse movimento dasein, propositivo, é a mesma dinâmica que Derrida (1972) chama de pharmakon, ou seja, lidar tanto com o veneno como com a cura do tecido social.
Andreotti, Silva e Jordão (2021, p. 597) propõem e nos convidam a «reimaginar futuros diferentemente», aderindo a proposta de Heller e McElhinny (2017, p. 257). A boa notícia, segundo as autoras é que o mito da modernidade, metaforicamente comparado a uma casa por elas, está ruindo e se desmoronando e, com isso, revelando a real face da sociedade contemporânea que é «retrógrada, conservadora, intolerante e cruel» (p. 597). Não posso me furtar a concordar com elas quando penso na condição do migrante ao longo da história e ao redor do globo. São cruelmente submetidos a essa racionalidade objetificadora na partida e na chegada, em sua origem e no seu destino, e que os priva de bens e direitos, bem como de suas subjetividades e de sua humanidade.
Sá (2016b; 2017) teoriza sobre o pesquis-a-dor social e conclui (em 2020a, p. 21) que este é «o cientista que, em sua angústia, pesquis-a-dor alheia, o sofrimento dos que compõem a tessitura social, com o fito de agir profilática, curativa ou até paliativamente, mas nunca esperando para a atuação post mortem do objeto, do fenômeno sob suas lentes e custódia». Para mim, ter essa compreensão nítida do meu papel social enquanto cientista é ser esse pesquis-a-dor da condição dos migrantes, é o dasein propositivo, o «já ser-em e o ser-junto a» população migrante a que tenho acesso. É o producere da ética moral do cuidado heideggeriano que atua para extirpar a hostipitalidade denunciada por Jacques Derrida e convertê-la em hospitalidade incondicional, solidária e humana
Esse pode ser um caminho ou parte do pharmakon qual movimento decolonizante que, quiçá, contribua à mudanças significativas no status quo dos migrantes!
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1 Professore associato presso la Universidade Federal de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde, São Paulo, SP, Brasil.
2 Universidade Federal de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde, São Paulo, SP, Brasil.
3 Epistemologicamente opto por redigir este texto na primeira do singular, pois quaisquer proposições para concepção de conhecimento são construídas de modo subjetivo e ontologicamente orientadas (Sá, 2021a).
4 Meu propósito neste texto não é discorrer sobre a modernidade. Entretanto, sempre que fizer referência a esse construto está implícita a sua constituição enquanto mito que se concretiza sob o manto do progresso e produz inúmeras miragens e falácias, e.g., o imperialismo, o colonialismo, a colonialidade, o capitalismo, a globalização, o neoliberalismo, etc. que se alternam e se camuflam histórica, cronológica e diacronicamente
5 Como Abdelmalek Sayad (2000) adoto o termo migrante, pois me refiro à circularidade dos processos migratórios já que toda e qualquer i-migração é ao mesmo tempo e-migração. Ademais, esse termo valoriza a condição de ator social e sujeito protagonista, que não é reduzido à origem ou destino na ótica do Estado.
6 É importante ressaltar que não faço distinção dos tipos, modos e razões para a categoria migração. Deixo aos leitores a possibilidade de usarem o conteúdo deste ensaio segundo suas plataformas e necessidades.
7 Difiro do Outro lacaniano (Lacan, 1973), mais abstrato, e que se refere a um lugar, a linguagem, ao inconsciente.
8 Adiro à crítica de Edward W. Said (1978) à inventiva construção discursiva em torno do signo do exotismo e de inferioridade, que são de caráter excludente, ao ratificar a binariedade entre ocidente versus oriente.
9 Convido os leitores à tarefa de buscar informações atualizadas ao lerem meu texto. Sugiro sites como: www.unhcr.org e www.acnur.org além de outros canais disponíveis e que trazem estatísticas recentes.
10 Esta seção deste texto é um recorte e uma adaptação de uma fração de minha tese de doutorado.
11 Usarei o termo estrangeiro em respeito à linha de raciocínio de Derrida, embora não concorde com a utilização desse vocábulo para se referir aos chegantes de outros territórios. Minha recusa por esse termo é baseada primeiro em minha postura filosófica que parte da etimologia do vocábulo estrangeiro [Do lat. extranĕus]: «externo, que é de fora, alheio, sem qualquer ligação com, esquivo, impróprio, repreensível, ser estranho, que não pertence a»; e, segundo, com base em minha postura epistemológica e linguística que trata a concepção e a operação da linguagem na sociedade por um viés inclusivo e livre de quaisquer marcas discursivas de discriminação, bem como minha aderência à proposta decolonizante encontrada nos trabalhos de Anzaldúa, Palermo, Curiel, Castro-Gómez, Hooks, Butler, Hall, Fanon, Bourdieu, Freire, Dussel, Foucault, Bhabha, Walsh, Eagleton, Koselleck, Rajagopalan, Pennycook, Canagarajah, Makoni, Kubota, etc.
12 Para um consideração de outro viés da proposta emancipatória de Sousa Santos, sugiro ver Sá (2020b).
Vol. 9, Issue 1, April 2023